terça-feira, abril 23

Culpa

 

Culpa tenho eu, bem sei, deste desalento que me empurra para
a solidão e entristece, o desejo de evitar o semelhante, o repisar de
momentos que afinal não foram como pareciam, de amabilidades e
sorrisos que, ao recordá-los, surgem com expressão diferente, o afas-
tamento revelando a máscara, pondo a descoberto a grima, o aze-
dume, a falsidade, a cobardia.
no dia-a-dia correspondemos mal à imagem que mostramos
ou à que do semelhante desejamos ver. Contudo, não haveria aí em-
peno, tanto nos habituamos ao teatro que a vida é, e em cujo palco
somos razoavelmente capazes de representar o papel que ela exige,
que de nós esperam, ou a que nos obrigam.
Do que não nos curamos, pelo menos eu não me curo, é da in-
capacidade de nos protegermos de nós próprios, de escaparmos àque-
le que no íntimo, guardião permanente, nos impede de esquecer e de
enfeitar.

domingo, abril 21

CORREIO DA MANHÃ - HOJE


 

 

 

J. Rentes de Carvalho lembra o exílio, o regresso a Portugal após o 25 de Abril e a desilusão com a política

O ‘teórico do maio de 68’ e da literatura portuguesa António José Saraiva acusou-o de pertencer à Pide.

Fernanda Cachão  

 

Como era Estevais (e Trás-os-Montes), como era o Porto e Lisboa da sua juventude?

O Registo Civil dá-me nascido em 1930, mas as circunstâncias que testemunhei, a influência precoce de muita leitura e, sobretudo, as obras de Eça de Queirós e do injustamente esquecido portuense Arnaldo Gama, contribuiram para que na maioria dos casos e situações não visse diferença, e longo tempo mantive esse sentimento de ser contemporâneo de ambos.

A província e o Porto continuavam idênticos ao que os livros deles descreviam, idem o ambiente, as ruas, os estabelecimentos, mesmo alguns cafés.

A Lisboa onde vivi entre 1948 e 1950 tinha muito da que lera em Os Maias e A Relíquia. O ambiente do Chiado fazia-me sorrir, porque de facto ainda havia escritores à porta da Lello, discutindo com grandes gestos.

Se me quero dar alguma paz de espírito, quando a visito hoje tenho de fazer esforço para aceitar e compreender a extraordinária mudança, não me deixar cair num saudosismo que nada cura. Perdeu-se o que ela para mim foi, a cidade da minha juventude. Não tenho interesse pela metrópole bacoca e estrangeirada em que se tornou.

Para Estevais e Trás-os-Montes bastavam os olhos e o sentir, para me certificar que ali o calendário parara em tempos remotos e pouco contava. Hábitos, vestuário, atitudes, crenças, lavoura, tudo tinha uma pégada secular. A luz era a das candeias ou lampiões de azeite, a água tirava-se de uma fonte de chafurdo, as “necessidades” faziam-se atrás de um muro. Água encanada, electricidade e saneamento chegaram à nossa aldeia na década de 70.

 

Já vi uma fotografia em que está vestido com a farda da Mocidade Portuguesa como era de praxe. Como era ser um menino de 11 anos nessa altura?


O meu exemplo não serve, porque era bastante o que me separava dos outros que, como eu, frequentavam o liceu Alexandre Herculano, no Porto. No geral vinham de famílias da classe média e alta, com hábitos, conversa e interesses que nada me diziam. Ser também o melhor aluno da turma não dava vantagem, idem o desinteresse pelo futebol. A farda da “Mocidade” era obrigatória, mas só a vesti duas vezes: para essa da fotografia, e numa parada do primeiro de Dezembro.

 

Abandonou o país por "motivos políticos", quer contar o que se passou?

Terminei o serviço militar com a “má fama” que já tinha tido no liceu. Uns meses depois o chefe da PIDE em V.N. de Cerveira avisou meu pai, de quem era amigo, que seria melhor o rapaz pôr-se a andar, porque tinha umas ideias...

 O conselho era bom, mas obter passaporte uma regalia de poucos, e para alguém que pertencia ao povo um bico-de-obra. Felizmente, o amigo de um amigo era compadre de um amigo de um ministro natural de Freixo-de-Espada- à Cinta, e essa cunha foi o suficiente.


Pertenceu ao MUD-Juvenil, quando António José Saraiva lhe deu aulas; mais tarde processou-o e ganhou. Conta a história no seu blogue. O que é que aprendeu com a história? 

 

Aprendi muito que bem dispensava de aprender. Vi nele, e nos compatriotas da sua corte, níveis de pulhice e baixeza que só conhecia em obras de ficção.

O ódio e a maldade faziam-no destravar a ponto de perder a cabeça e julgar-se intocável. Na manhã do dia 26 de Abril, estava eu no hotel em Lisboa, quando a minha mulher telefonou a perguntar se, como constava e ouvira na rádio, eu tinha sido preso. Chegado ao extremo da sem-vergonha, Saraiva tinha dado uma entrevista ao Telegraaf, então o maior jornal  neerlandês, onde afirmava ter sido eu agente da PIDE.

A Universidade de Amesterdão demitiu-o, movi-lhe um processo onde foi condenado por ofensa ao bom nome, mas Portugal sendo o que é, a Universidade Nova de Lisboa já lhe tinha aberto as portas e os braços.

Com esse caso, e nos três anos anteriores, aprendi tanto que para os detalhes o CM inteiro não chegaria. Com o título O “Sartre português” em Amsterdam  está essa miséria resumida no meu blogue Tempo Contado.

 

Como eram os exilados portugueses que encontrou em Paris e no Brasil?

Os do Brasil “sofriam” o exílio em camadas sociais a que eu não tinha acesso. Para os de Paris serve o que se pode ler no blogue nos textos sobre Saraiva. Os ainda vivos, inchados de vaidade patriótica e virtudes democráticas, dão-me vontade de rir.

 

Em exílio, quanto tempo levou até poder voltar ao país e em que condições regressou?  

Doze muito longos anos. Durante uma conversa, o nosso embaixador disse-me que nada havia contra mim, podia voltar. Três meses depois estava em Estevais, com mulher e três filhas,  espantadas do que viam, perguntando-me se ali o mundo tinha andado para trás. Descrentes do muito que, mesmo entrando pelos olhos, não conseguiam imaginar. Que o escuro da noite pudesse ser assim, pasmadas da multidão de os morcegos, as moscas e os mosquitos ainda mais, cobras a subir pelas paredes, carros de madeira e duas rodas puxados por bois. Um super antigamente.

 

Qual é a pior herança que a ditadura deixou ao país democrático?

Tempos atrás li uma entrevista com Edi Rama, o primeiro-ministro da Albânia. Quando a jornalista lamentou a incrível corrupção, respondeu ele: “Que esperava? O país é pequeno, não chegamos aos três milhões de almas, de facto somos família, somos todos primos”.

Nós seremos mais, só que a herança não nos vem da ditadura, mas de séculos.

O que eu esperava era que com a democracia diminuisse, pelo menos o preciso para salvar as aparências. Mas o nível a que chegou, e o descaramento dos cavalheiros e das damas ultrapassa a obscenidade.

 

Como descreveria António Oliveira Salazar?

Muito inteligente e culto, perspicaz, profundo conhecedor do povo e das elites. Com superior talento para a política, como demonstrou durante a Segunda Guerra Mundial, sendo alternadamente a favor do Reich e dos Aliados.

Infelizmente, ao apaixonar-se pela jornalista francesa, veio à tona o pacóvio ingénuo que no dia-a-dia era, e assim se estragou o retrato.

 

Como viu o resultado das últimas eleições em Portugal? 

Com um sorriso triste, porque nada muda. Saíram aqueles, entram estes, são a endogâmica  fidalguia da corte de Lisboa. Gente exótica, a viver na ilusão antiga e ultrapassada de que muito se resolve com a esmolinha e a “Sopa dos Pobres”. Pena é que o mundo esteja a mudar, e eles pareçam não se querer dar conta.

Num estudo do NIBUD li que, para viver descansado, um holandês solteiro, sem carro e em casa alugada, necessita uma reserva de cerca 3.500 €. Metade dos holandeses - sim, metade - cidadãos de um dos países mais ricos do mundo, não possuem essa “almofada”, pelo que podem ser considerados pobres. Esses e outros pobres revêem-se no PVV de Wilders.

Como é improvável que os “desprezíveis”, que votaram no Chega de Ventura, disponham de “almofada”, e ser previsível que um destes dias a UE vá dar um forte aperto aos cordões da bolsa, pode haver ocasião para recordar que o futuro, porque a Ele pertence, será o que Deus quiser.


sábado, abril 20

Maquilhagem

 

A arte de existir, se arte se lhe pode chamar, está na paciência de sofrer o desânimo, no ver semicerrando os olhos, no respirar fundo e depois, lentamente, deixar que com o sopro escape também a náusea e a desilusão.
Porque tudo é teatro, adereços, bastidores, maquilhagem. São tantos os actores como os pontos que lhes sussurram as palavras a dizer, as atitudes a tomar, lhes mostram o caminho do proveito e os escolhos em que se tropeça.
Actores, pontos, os que tocam a música, vão todos em fila, que é o mais seguro, debitando a monótona ladainha da aceitação, confortados por igualdades e direitos que imaginam, por certezas que lhes garantem tão seguras como o nascer do Sol.
O remédio é entrar no cortejo e ir também, cantar com eles, bater palmas, mostrar entusiasmo quando o arauto anunciar a passagem do rei e o esplendor do seu manto.